TEXTO DA PROVA DO MESTRADO
Para que
serve a literatura?
Gabriel
Perissé
A arte em
geral e a literatura em particular não servem para nada? São atividades cuja
grandeza reside nessa sublime “inutilidade”? A fruição de uma pintura, de um
poema, de uma obra de arte é apenas isso: fruição?
No
entanto, o prazer que sentimos na leitura de um conto, de um romance, de uma
crônica é um prazer interessante e interessado. O prazer estético que a literatura
proporciona-nos torna mais atentos às dores e aos odores da vida. Kafka dizia
que um livro deve ser como “martelo que rompa a espessa camada de gelo” sob a
qual nos escondemos. Afinal, para que serve a literatura? Para que escrever um
texto, brincar com as palavras, conceber imagens, metáforas? Para que criar
diálogos entre seres inventados, descrever mundos paralelos, fazer jorrar e
enxugar lágrimas invisíveis?
O professor francês Antoine Compagnon tem uma
resposta simples e impactante: “quando começamos a ler uma narrativa ou um
poema corremos o risco de nos tornar diferentes do que éramos antes dessa
leitura”. A literatura nos transforma. Leituras educadoras são aquelas que nos
transformam, não só em leitores melhores, mas em pessoas mais
atentas ao próprio ato de viver. Essa transformação se opera, por exemplo, na maneira
de ver o mundo. Aprendemos a ver o que não víamos antes. Como nos fazem
entender estes versos do poeta mineiro Murilo Mendes:
As mãos
veem, os olhos ouvem, o cérebro se move. A luz desce das origens através dos
tempos E caminha desde já Na frente dos meus sucessores
(“Somos todos
poetas”)
É como se
nossa percepção ganhasse força. Nossa sensibilidade aumenta. O tato, a visão e
a audição se deslocam. O cérebro, preso aos lugares comuns, começa a se mover
para todos os lados. Experimentamos a lucidez. Enxergamos o passado e o
futuro
mais nitidamente.
Tornamo-nos,
assim, pessoas mais críticas, menos manipuláveis. Já não nos seduzem certas programações,
certos discursos, certas certezas. Até mesmo certas obras literárias se mostram
insuficientes quando outras leituras já nos ensinaram a escolher e a ler
melhor. A ler melhor as linhas e as entrelinhas, a forma e o fundo, o óbvio e o
interpretável.
Não
precisamos mistificar a leitura como se o toque mágico da palavra literária
operasse milagres! Mas é um fato constatável que ler mais e melhor nos ajuda a
vencer algumas submissões. Lendo com frequência, tendemos a exigir, de nós
mesmos e de nossos interlocutores, uma clareza maior ao falar, mais sutileza ao
pensar, um pouco mais de originalidade ao viver.
Do que
fala a literatura, afinal de contas? Ainda que se refira a outros planetas, a outras
sociedades, a outras terras, a outros seres, é sempre de mim que a literatura
fala. De mim e de você. É sempre de nossas esperanças e desesperos que ela
fala. É da nossa humanização e da nossa desumanização que ela fala. Lendo
intensamente, sentimo-nos intensamente visados.
Reforçamos nossa autoconsciência. E daí brota a
vontade de resistir.
A “desistite” é uma doença da alma que nos faz
abrir mão da responsabilidade de viver. Uma existência sem sentido nos leva à
desistência. Desistimos de encontrar nos meandros dos significados comuns, que
dormem durante décadas no dicionário, um sentido especial para prosseguir no
jogo da vida, na leitura da vida.
Desistir
é também desistir de pensar. A leitura educadora, em contrapartida, convida à
resistência,
ao uso da inteligência, ao desejo da experiência, ao sentido da urgência. Um personagem
complicado denuncia minhas complicações. Um verso cheio de ambiguidades me interroga.
Vou buscar meu tempo perdido. Vou respirar meu sopro de vida. Vou contar meus
cem anos de solidão.
Num tempo
em que a atividade dos professores parece ter sido substituída pela informação abundante
e pelo entretenimento onipresente, a literatura pode vir em nosso auxílio.
Porque, nela, é possível encontrar caminhos para a formação de si mesmo e para
o reencontro com nossos semelhantes que são, em última análise nossos
dessemelhantes.
Resistir
tem a ver com o reconhecimento de quem nós somos. O nosso autorreconhecimento.
É de justiça (e isso ninguém discute) que os outros reconheçam o nosso valor.
Mas se não formos nós os primeiros a reconhece-lo, nada feito. Nós valemos, em
boa medida, aquilo que lemos.
Nossas
leituras fazem parte de nossa identidade. Somos o que lemos e o modo como lemos.
Gostar de ficção nos aproxima da realidade.
O músico
Jorge Mautner costuma dizer que existem dois tipos de imbecis: “os imbecis que
não leem, e os imbecis que leem”. A diferença é a seguinte: os que leem
conhecem a extensão da imbecilidade própria e alheia, ao passo que os que não
leem ignoram até mesmo a sua lamentável situação. Os que fogem da leitura mal
desconfiam (de)que andam perdidos em todos os espaços.
As
perguntas retornam: para que serve mesmo a literatura? Será uma disciplina
entre as outras? Ou uma coisa belamente inútil?
Revista
Educação, julho de 2014. [Adaptado]
Ilustração
de Marina Faria para o livro
Quando
Blufis ficou em silêncio, de Lorena Nobel e Gustavo Kurlat (Companhia das
Letrinhas, 2014)
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