quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A MORTE DAS PALAVRAS

Palavras são como as pessoas: nascem, vivem e morrem. Umas de morte morrida, tão velhas ficaram como as coisas que designavam. Quem hoje penteia suas madeixas ou anda de tílburi? Quem hoje compra rapé ou usa pince-nez?
Outras morrem de morte matada: são substituídas por palavras mais modernas, mais "antenadas" com nosso tempo. Quem hoje chamaria o goleiro de quíper ou o médio-volante de centeralfo? Quem chamaria "locutor" de speaker? Quem ainda datilografa o próprio nome ou disca um número no telefone? Evidentemente, as palavras são o espelho da realidade e mudam com o mesmo dinamismo com que muda a realidade. Logo, não é de causar pesar a morte de certas palavras, embora outras, de tão belo uso em tempos passados na boca ou na pena de nossos grandes escritores, tenham sido sentenciadas de morte em tribunal de legitimidade duvidosa, como "favela", "aleijão", "prenhez"...


Foto: Marcos Santos / USP Imagens
Mas o espantoso é que até palavras gramaticais, aquelas que não espelham a realidade, apenas fazem a língua funcionar, também morram - por vezes, assassinadas pelos próprios falantes. É o caso de "cujo", pronome relativo possessivo, muito útil no passado, mas que, talvez por obrigar a uma inversão sintática da oração, começou a causar embaraço aos usuários menos destros do vernáculo. Especialmente quando está em jogo outra pedra no sapato dos falantes egressos de nosso ensino público: a concordância. E assim até falantes supostamente cultos (pelo menos, portadores de diploma universitário) fazem certos malabarismos verbais para evitar o emprego de um "cujo" que, mal colocado, é uma verdadeira casca de banana à espera do transeunte incauto. E dá-lhe "a pessoa que o nome dela eu não lembro agora" ou "o sujeito que o filho é médico". Às vezes, ocorre o oposto: querendo parecer letrado, o gaiato sapeca um "cujo o qual": "troquei a lâmpada cuja a qual estava queimada".

Por razões que desconheço, "onde", antigo advérbio de lugar, tomou o lugar do falecido "cujo" em frases como "o candidato onde as propostas são melhores" e coisas do tipo. Talvez a origem desse uso tenha um dia sido de fato locativa: "a cidade cujos habitantes têm a maior renda" passou a alternar com "a cidade onde os habitantes têm a maior renda". Só que daí a "onde" virar palavra passe-par-tout foi um pulo.

E "tampouco", quem ainda usa? Algum trocadilhista poderia objetar que essa palavra hoje se usa tão pouco... Mas o fato é que renunciamos a um vocábulo legitimamente pertencente a nosso sistema gramatical, já que é antônimo de "também", para em seu lugar empregarmos o insípido e menos econômico "também não": Eu não fui à festa, e João também não". Claro que construções mais literárias como "Mas não estou triste, tampouco alegre, não estou sentindo nada, pode jogar água fervida no meu peito, não vou gritar, não vou levantar, eu não estou aqui, ninguém está me vendo, eu não estou me vendo" (Martha Medeiros) ficariam empobrecidas se tascássemos um "também não" no lugar de "tampouco": "Mas não estou triste, também não alegre...".

Vejam que não estou falando de palavras rebuscadas, índice de erudição pedante, como "obséquio" ou "contradança"; estou falando de palavras que têm equivalentes em outras línguas perfeitamente vivos e vigorosos: qualquer um que aprenda inglês ou espanhol terá de saber usar whose, either, neither, cuyo, asimismo, tampoco.

A realidade é que certas palavras e expressões como "outrossim", "sobremaneira", "deveras", "com efeito", "debalde", "dar azo", se perderam nas brumas do passado, e outras não nasceram para substituí-las. Ou seja, o idioma apenas se empobreceu de recursos expressivos, na mesma medida talvez em que se encheu de termos técnicos. Para um amante das palavras, para um cultor do estilo, para um admirador da língua, esse passamento dos vocábulos pode ser melancólico e suscitar nostalgia de um tempo quiçá mais poético. Mas, como disse Drummond na crônica Antigamente, "tudo isso era antigamente, isto é, outrora".

Por Aldo Bizzocchi

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