sábado, 3 de outubro de 2009
DEIXEM O MEU ÓCULOS EM PAZ!
DEIXEM O MEU ÓCULOS EM PAZ!
É mesmo uma pena que nossos melhores dicionários de referência, o Aurélio e o Houaiss, oscilem entre a tentativa de preservação das prescrições tradicionais e a vontade de incorporar e abonar as formas inovadoras já consagradas no uso do português brasileiro. Digo isso porque, ao tratar do substantivo óculo(s), ambos os dicionários assumem o tom mais prescritivista e autoritário possível, em franca contradição com as análises mais bem feitas que encontramos em outros verbetes:
AURÉLIO SÉCULO XXI: "No Brasil, pelo menos, diz-se, erroneamente, o óculos, este óculos, meu óculos" (verbete ÓCULOS)
HOUAISS: "A palavra óculos é pluralia tantum* ... sendo, portanto, erro a discordância de número (um óculos) que se tem vulgarizado no português coloquial do Brasil (formas corretas: uns óculos, meus óculos, um par de óculos)" (verbete ÓCULO)
*Pluralia tantum são as palavras que só são usadas no plural como bodas, anais, costas, férias.
Como diria nosso herói Macunaíma: "Ai, que preguiça!" Por que essa insistência em achar que esse importante dispositivo para melhorar a visão (que eu uso há quarenta anos!) tem que ser considerado como um par? Por que não chamá-lo então de binóculo, já que também existe o monóculo?
O que aconteceu com óculos foi o mesmo que aconteceu com tesouras, cuecas, calças, ceroulas, tenazes, listados pelo dicionário Houaiss no verbete PLURALIA TANTUM. Nesse verbete, a análise, felizmente, não recorre à imposição do que é "correto" e à condenação do "erro", sendo, ao contrário, isenta desses preconceitos:
PLURALIA TANTUM
Rubrica: gramática.
expressão latina com que são referidos os substantivos de uma língua cuja forma é um plural morfológico, mas que semanticamente podem denotar uma única unidade; trata-se sempre de referentes formados de partes simetricamente duplicadas (p.ex.: tesouras, cuecas, calças, óculos, ceroulas, tenazes)
Uso
embora o emprego do pl[ural] para indicar uma só parelha seja normal no português, registra-se uma dicotomia de tendência: de um lado, para obviar possíveis ambiguidades e explicitar a unidade, o locutor refere-se a um par de tesouras, de alicates, de pinças etc.; de outro, esp[ecialmente] no port[uguês] do Brasil, consuma-se o quase geral emprego do sing[ular] nos mesmos casos: uma tesoura, uma tenaz, a minha calça, a cueca.
É uma pena que não se tenha mencionado também o "quase geral emprego do singular" no caso de óculos. A razão do nosso uso de óculos no singular está nessas palavras do verbete: "substantivos cuja forma é um plural morfológico, mas que semanticamente podem denotar uma única unidade".
Pronto, gente, é só isso: é semântica! A semântica estuda a relação entre as palavras e as coisas do mundo que elas designam. Se nós concebemos o óculos como uma coisa só, nossa lógica linguística vai querer corresponder à nossa lógica de percepção da realidade: se o objeto é considerado como uma unidade, a palavra que o designa só pode estar no singular!
Vamos parar com essa insistência boboca, deixar todo mundo usar seu óculos em paz e cuidar de coisas mais importantes? Por exemplo: somente 8% das escolas com as melhores médias do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2009 eram públicas. Não é perdendo tempo tentando convencer os alunos de que a palavra óculos só pode ser usada no plural que nosso ensino público vai sair do fundo do poço!
MARCOS BAGNO JULHO DE 2009http://www.marcosbagno.com.br/conteudo/arquivos/art_carosamigos-julho09.htm
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