CONSTRUIR A DEMOCRACIA
Palavras podem ser tão usadas — e tão mal usadas — que vão perdendo seu significado. Vai-se a essência, ficam as franjas que cada um sopra para o lado que quiser. Assim, entre nós, de momento, vejo democracia.
É democrático reclamar, não aceitar malfeitos, exigir direitos, manifestar-se. É essencial para nosso respeito por nós mesmos.
Não é democrático ser violento: é simplesmente violento. Quebrar bancos e lojas, invadir e ocupar prefeituras e assembleias, impedir civis de entrar e sair de casa, até de ir trabalhar, é uma forma de ditadura momentânea e pontual, de péssimo gosto e efeito contrário.
Nesta atual crise de confiança, de respeito e de autoridade, cada um de nós precisa encontrar sua autoridade interna, seus limites. Pois, quando não despontam líderes confiáveis, quando políticos se calam ou parecem atarantados, governantes não sabem o que fazer para manter ou estender seu poder, instituições estão desacreditadas porque não funcionam e leis são descumpridas, estamos todos perplexos.
Queremos acabar com a corrupção, talvez o maior de nossos males, mas se vamos aplicar alguma lei, alguma autoridade possível, nos aborrecemos.
Quebrar coisas, invadir locais até sagrados, como um hospital onde pessoas tentam sobreviver e médicos se dedicam a salvá-las, em geral mal pagos, nos horroriza, mas ai de quem procurar deter isso.
Imediatamente, até parte da imprensa reclama: “Usaram gás, usaram pimenta, foram truculentos!”.
Não vejo nada mais truculento do que quebrar a propriedade alheia, ou invadir e ocupá-la, insultar, cuspir, barrar. Sou a favor de manifestações e contra a resignação omissa. Não creio que cessem por agora, mas para ser eficientes precisam ser pacíficas de verdade, civilizadas, respeitosas com relação a seus membros e a toda a sociedade.
A violência de trogloditas afasta delas muita gente bem-intencionada que também quer protestar, e sabe contra o que se protesta. Quem grita, quem bate não tem autoridade exerce um autoritarismo primitivo. E, quando todos estamos indecisos, ele apenas acovarda quem deveria exercer sua autoridade legítima, mas não sabe como.
Rótulos vão ficando caducos e vagos: já não basta ser “contra o capitalismo” se nem sabemos direito o que ele é, e se existem vários capitalismos. Nem vale dizer que se age em nome da “esquerda”, se há várias esquerdas — e o que interessa na verdade é o bem comum, de todos, acima da ideologia partidária.
Estamos em momentos extremamente confusos, perigosos, de vulnerabilidade e indecisão. Consertar isso começa na família, nas pequenas comunidades, onde o caos nasceu. Pais não sabem o que fazer com seus filhos, professores são esbofeteados por alunos, médicos são xingados, rimos e debochamos mais ou menos de tudo, nos achando fortes e importantes, numa arrogância juvenil deslocada.
Os atos e expressões de ódio de jovens bem vestidos, bem nutridos, que atacaram por exemplo um grande hospital em São Paulo, foram de espantar: estava destruindo o que na verdade é bem de todos, provocando ma sofrimento nos doentes que podiam ser um deles, um amigo, um familiar. Para quê? E com que direito?
Quando as autoridades externas falham como têm falhado aqui, resta descobrir elementos de uma autoridade interna em cada um, os nossos próprios limites, que nos dizem – ou deveriam dizer — que protestar é necessário, mas que destruir é sempre negativo, ainda mais sob rótulos incertos.
É difícil construir um convívio democrático: somos demasiados, demasiado diferentes, demasiado ansiosos por usar a voz que descobrimos ter. Vamos usar não morteiros, pedras, pontapés, cusparadas e insultos, mas inteligência, persistência e firmeza.
Democracia não se consegue destruindo: ela é igualitária, de ambos os lados há direitos a ser resguardados, bens, vidas. Democracia é todos terem valor e espaço, todos serem respeitados respeitando-se.
Temos um longo caminho a percorrer ainda, um duro aprendizado que, só ele, pode nos tornar uma sociedade digna.
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