domingo, 22 de novembro de 2015

NO DIA DA MÚSICA. UM PLANO DE AULA.

Análise literária da música Construção de Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo como tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado.

“Construção”, 1971, que, junto com “Pedro Pedreiro”, é uma das canções emblemáticas da vertente crítica, podendo-se enquadrar como um testemunho doloroso das relações aviltantes entre o capital e o trabalho.
Com efeito, “Construção” retoma o filão inaugurado precocemente por Chico Buarque: o da crítica social, tendo como personagem um elemento do proletariado – no caso, coincidentemente, um pedreiro. Pois o protagonista de “Construção”, que não é nomeado, é apenas o sujeito oculto dos verbos na terceira pessoa, parece ser o “Pedro Pedreiro” que esperava o trem nos velhos tempos – nos idos de 1965, talvez um pouco antes – e que agora cai dos “andaimes pingentes” e se despedaça.
Trata-se de um dos textos mais rigorosamente “construídos” do compositor, de estrito rigor formal e apuro técnico. Significativo, aliás, que uma de suas canções mais “engajadas” seja, ao mesmo tempo, a de mais rigoroso travejamento formal.
É interessante ressaltar que “Construção” situa-se no bojo da maré de experimentalismo formal que, vestido das roupagens de “Estruturalismo”, “Construtivismo” e outros ismos vários, predominou entre nós no início da década de 70, tanto no pensamento crítico quanto na produção literária.
Mesmo tendo sido basicamente como o autor de “Construção” que Chico se criou um lugar de cantor dos oprimidos na Música Popular Brasileira, ele recusa, terminantemente, qualquer intencionalidade social no ato de compor essa canção. Em entrevista concedida à revista Status, por exemplo, faz declarações bastante interessantes para se abrir o debate das relações entre “Lírica” e “Sociedade”. Depois de declarar que “problema pessoal não dá samba”, Chico diz que “Construção” não era, dentro dele, uma música de denúncia ou de “protesto”.
Segue um trecho da entrevista:
CHICO: Não passava de experiência formal, jogo de tijolos. Não tinha nada a ver com o problema dos operários – evidente, aliás, sempre que se abre a janela.
STATUS: Portanto, não havia nenhuma intenção na música.
CHICO: Exatamente. Na hora em que componho, não há intenção – só emoção. Em “Construção”, a emoção estava no jogo de palavras (todas proparoxítonas). Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse…um tijolo – acaba mexendo com a emoção das pessoas.
STATUS: Então não se liga com intenção?
CHICO: Tudo é ligado. Mas há diferença entre fazer a coisa com intenção ou – no meu caso – fazer sem a preocupação do significado. Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio, a Patagônia, talvez, que não tem nada a ver com nada. Em resumo, eu não colocaria na letra um ser humano. Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir a futebol. Tudo entra na cabeça em tumulto e sai em silêncio. Porém resultado de uma vivência não solitária, que contrabalança o jogo mental e garante o pé no chão. A vivência dá a carga oposta à solidão e vem da solidariedade – é o conteúdo social. Mas trata-se de uma coisa intuitiva, não intencional: faz parte da minha formação que compreende – igual aos outros da mesma geração – jogar bola e brigar na rua, ler histórias em quadrinhos, colar, aos seis anos, cartazes a favor do Brigadeiro por causa dos meus pais, contrários ao Estado Novo.
Há nessa fala alguns pontos a serem ressaltados. Em primeiro lugar, há que se equacionar devidamente a afirmação segundo a qual não existe “intenção” na hora de criar. Pode não haver a intencionalidade de uma denúncia, de um recado político, mas, conforme o próprio Chico diz, há o artesanato verbal. E só com “emoção” dificilmente ele encontraria as proparoxítonas certas para ser desenho lógico, que, transfigurado pela poesia, se transformará em “desenho mágico”.
Em segundo lugar, pode-se desentranhar daí uma reflexão (com toda a descontração de quem se propunha a ser publicado por “Status”) de como se faz a ligação entre o individual e o social (em termos hegelianos, a relação dialética entre a parte e o todo, entre o pessoal e o geral): aquilo que Adorno sistematizou de uma maneira definitiva no seu “Discurso sobre Lírica y Sociedad”, e que servirá de análise desse texto. Depois de declarar que “uma corrente coletiva subterrânea funda toda a lírica individual”, diz o pensador de Frankfurt que a participação da corrente subterrânea coletiva se faz graças à experiência histórica (Chico: “Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio…[…] Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir a futebol…”). Não é a experiência individual que vale nem a emoção individual, continua Adorno, “mas estas não chegam a ser nunca artísticas, a menos que consigam uma participação no geral por meio, precisamente, da especificação que é o seu estético tomar forma.
Assim, a dimensão social toma existência, na poesia, através da linguagem (o que é uma retomada de uma ideia do jovem Lukács, segundo a qual o social na literatura é a própria forma). Em outras palavras, a linguagem é uma mediação entre o homem e a sociedade. E aqui se toca num ponto de vital importância. É por isso que naquilo que nas palavras de Chico “não passava de uma experiência formal, jogo de tijolos” – o social emergiu com tamanha força. No que Chico declara não passar de um exercício lúdico com a linguagem, num jogo de palavras, transmite-se um tal recado social.
Mas vamos examinar as peças desse explícito jogo de palavras que é “Construção”, onde se mostra sua poderosa força artesanal. O essencial desse jogo consiste no caráter intercambiável dos termos (e, consequentemente, do ser humano aí em questão). As palavras finais de todos os versos, todas proparoxítonas, são substituíveis. Cabe em primeiro lugar perguntar por que proparoxítonas. Há algo de estranhamento numa proparoxítona, de rareza, que Chico tão bem soube capitalizar. Há nela quase que um soluço: a voz se alça e como se suspende lá em cima, caindo em dois tempos. Aliás, instituiu-se em Chico já quase uma “tradição” no manejo com as proparoxítonas.
Esse poema de versos rigorosamente dodecassílabos obedece a um rígido esquema estrutural: um bloco de 4 estrofes de 4 versos: 1 verso isolado (verso 17); um bloco de 4 estrofes de 4 versos (que repetem os 16 versos iniciais, com exceção da última palavra de cada verso, sempre uma proparoxítona); um verso isolado (verso 34); um bloco de uma estrofe de seis versos, constituída por versos retomados do primeiro bloco (com exceção da última palavra, sempre um proparoxítona), a saber: versos 1, 2, 6, 9, 14 e 15. Essa estrofe funciona como uma espécie de condensação ou resumo da canção inteira; um verso final isolado (verso 41).
Evidencia-se uma aflitiva repetitividade que, no limite, sugere o eterno retorno dos gestos sempre retomados, a mecanização do corpo e da vida. Dentro da simetria, da mesmice da estrutura sintática, das regularidades morfológicas, métricas, rítmicas e fônicas que desenham a circularidade do todo, mudam só as últimas palavras, todas proparoxítonas.
Mas os versos isolados, que falam de morte, a saber:
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego (v. 17)
Morreu na contramão atrapalhando público (v. 34)
Morreu na contramão atrapalhando o sábado (v. 41)
Pontuam o texto, introduzindo aí um movimento alterado (e aqui se pode tatear muito bem o parentesco da ironia com a morte, ou melhor a ironia enquanto jogo com o instinto de morte). Pois a partir do verso 17, a linguagem sofre uma desarticulação – como que imitando o despedaçamento que sofre o pedreiro com a queda.
Na realidade, a morte atrapalha. Desorganiza o mundo, perturba o tráfego, o público, o sábado. É a grande dissonância que transforma duplamente: pelo trombolho físico que um cadáver representa, fazendo, por exemplo, com que o tráfego tenha que ser desviado e que os carros andem na contramão (embora o texto desloque para o corpo o fato de ter caído na contramão); e ainda por um segundo aspecto: a necessidade não apenas de sobrevivência, mas também da reprodução da mão-de-obra desqualificada, sem o que o sistema entraria em colapso. Mas se a morte atrapalha, no entanto ela é o limite para o qual tende a reificação provocada pelo trabalho alienado. De “homem” o indivíduo passa a “máquina” (mundo reificado, mas com movimento) e logo a pacote (objeto, mas desprovido de movimento). E interessa ao público antes a máquina que o pacote.
Há assim dois grandes movimentos no texto: no primeiro deles, que compreende as quatro primeiras estrofes mais o verso 17, há uma pertinência quase impecável dos adjetivos em relação a seus substantivos, das orações subordinadas (no caso, comparativas) em relação a seus referentes. Do verso 18 em diante – isto é, depois que a morte foi introduzida no texto – a pertinência se perturba, se embaralha, revelando desarticulação. Compare-se, á guisa de ilustração, os diferentes graus de pertinência, por exemplo, entre:
a) Sentou pra descansar como se fosse sábado (v. 9) e
b) Sentou pra descansar como se fosse um pássaro (v. 38); ou
a) Dançou e gargalhou como se ouvisse música (v. 12) e
b) Dançou e gargalhou como se fosse o próximo (v. 29); ou ainda
a) E flutuou no ar como se fosse um pássaro (v. 14) e
b) E flutuou no ar como se fosse sábado (v. 31).
Em todos os versos a), os adjetivos ou termos comparativos são racionais, lógicos, pertinentes; nos b) o grau de pertinência diminui, quando não desaparece totalmente; embora o rígido esquema estrutural da canção continue o mesmo, em relação ao último termo de cada verso revela-se qualquer coisa de estranho, de desfocado, de incongruente, de inquietante – no limite, de desarticulado. É como se o corpo despedaçado do pedreiro – mimese do corpo social fragmentado, disperso e mutilado – contaminasse a linguagem do poema, desarticulando-a. Deflagra-se uma crise da linguagem.
O próprio caráter de coisa eminentemente “substituível” das proparoxítonas finais, manipuladas como tijolos, revela a sua pouca personificação. A mulher do pedreiro, tanto faz que seja a “única”, ou a “última”; o filho, “único”, ou “pródigo”, do mesmo jeito que as paredes, “sólidas”, “mágicas”, “flácidas”. As palavras são tão intercambiáveis quanto o ser humano reificado. E as alterações, ao fim de cada verso, são tão aleatórias que apenas reforçam a mesmice trágica daquela vida ou daquela morte? Além disso, o torneio sintático – irônico “como se” testemunha uma realidade vivida vicariamente: as personagens agem como se realizassem tais e tais gestos, quase que numa suposição.
Desse conjunto de realidades trocáveis, realçam-se umas tantas proparoxítonas, que aparecem com maior frequência (três vezes cada): último, máquina, sábado, príncipe, bêbado. Todas, extremamente significativas. Com efeito, “último(a)” revela a dramaticidade da cena fatal: a personagem é flagrada nos seus gestos rotineiros, cotidianos, repetitivos, mas executados pela última vez, porque depois sobrevirá a morte. “Último” torna-se assim uma proparoxítona patética, à altura da tragicidade que a cena exige. Por seu lado, “máquina” traduz um dos motivos mais importantes do poema, senão o mais importante, uma vez que o homem, reduzido a um desempenho de trabalho alienado, é desumanizado tanto no trabalho como no amor:
Subiu a construção como se fosse máquina
[…]
Amou daquela vez como se fosse máquina
Aqui mais uma vez uma equivalência entre o afetivo e o social (Marcuse: “Seu desempenho erótico é posto em alinhamento com seu desempenho social”), funcionando o trabalho alienado como instrumento anti-sexual privilegiado. Efetivamente, a compulsão ao trabalho dessensibiliza, embota o indivíduo (cf. “Seus olhos embotados de cimento e lágrima”; “Seus olhos embotados de cimento e tráfego”) e, no limite, o robotiza. Como pode amar um homem “embotado”, isto é, que perdeu o fio, o gume, o corte – o poder de penetração?
Por isso é que “sábado” – símbolo do fim de semana e, portanto, do lazer, aparece também insistentemente. Pois sábado – que significaria a possibilidade da liberação do trabalho compulsivo – surge pela primeira vez no poema pertinentemente, como metáfora de descanso. Mas no caso de pedreiro, trata-se do lazer negado, roubado, que é reservado ao…príncipe. Assim “príncipe” aparece para ressaltar o seu contrário. É referência indispensável numa sociedade de classes, marcando o grotesco da comparação.
Por seu lado, “bêbado” se remete diretamente à desarticulação. Há uma ligação eventual, sugerida, entre a bebedeira e a queda (sentou-comeu-bebeu e soluçou-dançou e gargalhou-tropeçou-flutuou-se acabou), assim como há uma ligação entre a bebedeira e o poder inebriante do ritmo. Do ritmo do trabalho mecânico, repetitivo, alienado, e que é mimetizado pelo ritmo do poema na sua repetividade. A desarticulação a que me referi pode ser figurada como uma “pertinência bêbada”.
Existe nesse poema a construção de uma queda e de uma morte, e devemos estar atentos ao realismo psicológico contido nessa metáfora. A ressonância emotiva do desfecho, no leitor, é demoradamente construída: a personagem é apresentada e ganha movimento, vida e densidade ao longo das estrofes. Suas entidade afetivas são convocadas: a mulher, os filhos. Revelam-se seus hábitos, modos de vida: basicamente os gestos no trabalho (pois todos sabemos que, na classe operária, é este o principal vínculo do indivíduo com a realidade); a hora do descanso; o que come; suas características físicas: “passo tímido”, “olhos embotados de cimento e lágrimas” – a deformação corporal devida ao trabalho. “Cimento e lágrimas”: junção de dois termos tão disparatados entre si, mas que formam a argamassa duma vida de pedreiro. E a queda em si é preparada, através de uma sequência quase cinematográfica: subiu-dançou-tropeçou-flutuou-se acabou-agonizou-morreu.
O pedreiro sobre para cair: é essa a única “ascensão” que a vida lhe permite.
Em “Construção” pode-se decodificar não apenas o “problema social” do operário não-qualificado, que se expõe à morte pela precariedade das condições de segurança no trabalho, mas, alargando-se o campo, pode-se ver aí a alegoria do corpo social fragmentado, de uma sociedade desintegrada e mutiladora, que isola os indivíduos.
http://pensadoranonimo.com.br/

Nenhum comentário: